08/04/2014

O Rapaz conta como foi: Capicua no Musicbox (Concerto de apresentação - "Sereia Louca")


Este artigo foi escrito no contexto da parceria com o Strobe, e como tal, podes vê-lo igualmente neste site (que é bem bonito!)

“O preço de uma pessoa vê-se na maneira como gosta de usar as palavras. Lê-se nos olhos das pessoas. As palavras dançam nos olhos das pessoas conforme o palco dos olhos de cada um.”. São estas a palavras iniciais do disco homónimo de Capicua, a rapper oriunda da Cedofeita. Agora com disco novo, “Sereia Louca”, que apresentou perante um Musicbox completamente lotado, as palavras inicialmente descritas são igualmente (e talvez reforçadas) aplicáveis: Ana Matos, que no mundo do rap se torna Capicua, tem como arma as palavras que usa como ninguém, perfigurando-se como uma das letristas/poetisas mais talentosas dos nossos tempos.
A plateia que se vê no Musicbox demonstra desde logo a capacidade que o rap de Capicua tem para agradar às massas, coisa que dentro deste estilo nunca se afigura fácil. O rap emocional, biográfico e sem se colar directamente a estereótipos e ideias pré-concebidas, conquista e agrega público desde os acérrimos fãs de hip-hop, aos restantes que talvez nunca se imaginariam num espectáculo deste estilo musical. Se há artistas transversais, Capicua é o perfeito exemplo. E “Sereia Louca”, vem cimentar essa posição de destaque.
O concerto inicia-se com o vídeo explicativo do conceito e do nome do disco, nascido num sonho e transformado em “Sereia Louca” pela mente incrivelmente criativa de Capicua. Apresenta-se então em palco a rapper, fazendo-se acompanhar da fiel voz de suporte M7, e do talentoso D-One na importantíssima base instrumental. É mesmo o single do álbum, que arranca uma noite que o público e a artista nunca iriam deixar que fosse algo menos que memorável. “Sereia Louca”, tema que nos fala da vontade de querer mudar quem somos e da coragem para o concretizar, tem em muito de si o poder que rapper incute no seu trabalho, e na emoção com que se dedica àquilo que tão bem faz. “Lenga”, cantada acapella, revela uma vez mais a incrível faceta de Capicua: mais do que uma simples rapper, é uma poetisa dos tempos modernos que utiliza o hip-hop para fazer chegar os seus pensamentos a todos que se dispõem ouvi-la. Seguiram-se “Alfazema”, “Líquida” (Se o disco nos fala sobre as míticas sereias, não poderiam faltar referências ao seu natural habitat) e a incrível faixa “Lupa” que em disco conta com a colaboração de Aline Frazão. Capicua demonstra a cada música, a cada palavra, a enorme entrega á sua música, fazendo-nos ter a certeza que nada do que se passa ali é por acaso (inclusive a parte visual, que ficava a cargo de Dário, e dos seus rabiscos que se projectavam em palco). O sentimento que transmite e transparece a cada verso que solta, reflectem-se imediatamente no público que ferverosamente a acompanha a cada música.

Fotografia por: Diogo Cruz
Tempo agora para Capicua apresentar a “cauda” da sua “Sereia Louca”, como habitualmente se costuma referir às versões acústicas de temas de trabalhos anteriores presentes no disco. Sobe então ao palco Mistah Isaac, exímio no beatbox e na guitarra, para dar corpo a “Vinho Velho”, “Luas” e “Casa no Campo” (uma das mais aguardadas da noite).
Mas se pensam que os temas da rapper apenas respiram de temas agradáveis de explorar, Capicua rapidamente nos desengana: “Isto até agora foi tudo muito cor-de-rosa, mas a vida nem sempre é assim”. E desta forma chega-nos “A Mulher do Cacilheiro” , canção sentimental que retrata a realidade de muitas mulheres. Dentro do mesmo registo, junta-se agora ao espectáculo Gisela João (curiosamente outro perfeito exemplo de uma artista que veio refescar o estilo onde se insere, sem o desvirtuar das raízes), cujo assombroso poder vocal eleva a saudosista “Soldadinho” para um outro nível emocional. Já sem a fadista como companhia, chega “Jugular” e “Medo do Medo”, canções com conotação política e de reacção social muito ao estilo da intervenção de artistas que enfatiza em “Vayorken” (uma alegre de biografia da sua infância): Zeca Afonso e Sérgio Godinho.
E como uma festa de celebração de disco novo, não pode deixar de incluir sucessos do passado, Capicua faz-nos reviver as suas colaborações e trabalhos  mais antigos (“Capicua Goes Preemo” ,de 2008, e “Capicua”, o LP de 2012) através de músicas como “Lingerie” ,“Maria Capaz” e “Tabu”.
O concerto aproximava-se do fim, mas era ainda tempo para “Vayorken” e “Mão Pesada”, a faixa que personifica a atitude poderosa e maneira de ser da rapper portuense: “mulher do norte, forte, ar de respeito”, que “agarra, não abraça”.
Teria sido mesmo este o final da noite, não tivesse Capicua voltado ao palco para protagonizar um pouco habitual encore. “Eu não gosto muito destas coisas, mas hoje tem de ser”, confessa Ana Matos antes de cantar “Pedras da Calçada”, da sua segunda mixtape “Capicua Goes West”.
Chega ao fim a noite que deixou ainda mais vincado o cada vez mais evidente reconhecimento que Capicua tem junto do público português. A transparência das letras, a entrega e simplicidade com que se dá ao que interpreta, catapultam-na para um lugar de destaque não só no hip-hop, como no panorama musical em geral. “Há tantas estrelas, e eu brilho sem esforço”, como exclama em “Luas”, pode parecer egocentrismo e apenas mais um verso deste género no mundo do rap, mas não…não poderia ser mais verdadeiro. A isto chama-se dom.

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