11/12/2013

O Rapaz à conversa com: Elísio Donas (Ornatos Violeta)



Nova rubrica neste blog, e esta é talvez aquela com a qual eu estou mais entusiasmado e da qual eu irei tirar momentos e "Agradáveis Conversas" certamente inesquecíveis que desejo partilhar contigo. 
E não poderia ter tido melhor início, sinto-me um sortudo: estive numa agradável conversa com o Elísio Donas, antigo membro dos Ornatos Violeta, e dono de uma brilhante carreira como músico. E foi precisamente disso que falámos: desde os tempos de "menino nervoso" por entrar em palco, até ao enfrentar de 7 Coliseus repletos de ferverosos fãs, assim como de outras fabulosas histórias simpaticamente partilhadas por alguém que faz da música a sua vida. Como é óbvio, não podia deixar de partilhar algo de tão elevado interesse contigo! Vamos a isso.


Olá Elísio! É uma honra teres aceite o meu convite para esta conversa. E para começar com isto, sugiro que iniciemos precisamente nos primórdios da tua vida musical. Lembras-te do teu primeiro contacto com a música ? Como é que nasceu esse interesse ?

Eu sou um gajo privilegiado, absolutamente privilegiado. Venho de uma família daquelas em que a minha avó tinha piano em casa, a minha bisavó tinha piano em casa , e portanto era muito normal tocar-se piano, um bocado como aquelas famílias à antiga das senhoras que falavam francês e tocavam piano. Eu tanto via o meu pai tocar, e como em família tínhamos aquelas tertúlias à noite, onde cantávamos e tocávamos canções do Zeca Afonso , Adriano Correia de Oliveira e outros músicos importantes da altura, que desde cedo comecei a experimentar instrumentos. Há até fotografias minhas a tocar piano com 4/5 anos, em que provavelmente eu estaria a fazer barulho e começar a descobrir a musicalidade, portanto o meu interesse começou desde bastante cedo. Comecei a estudar formação musical aos 6 anos, piano aos 7 e nunca mais larguei a música. Temporariamente larguei os teclados, entre os 10 e os 14 para tocar baixo, guitarra, em bandas de rock. Houve uma procura de outros instrumentos, mas aos 15 anos volto ao piano e percebo que esse era o meu instrumento. 

Talvez um dos momentos que igualmente marcou o teu início de percurso na música, foi a primeira vez que tiveste de entrar em palco para enfrentar uma plateia. Como recordas esse episódio?

A primeira vez  foi naquelas audições que havia da escola de música, em que eu estava na Teclado, e lembro-me da história da primeira audição, na qual eu me enganei ao terceiro compasso e inventei a peça toda. Depois sim, começo então as audições no Teatro Carlos Alberto no Porto e aí sim, há o meu primeiro contacto com os nervos e com o pânico. Ali era um a um, ou dois a dois, em frente aos pais e aos miúdos todos da escola, umas centenas de pessoas, e lembro-me que da primeira vez que ia entrar em palco para tocar uma peça sozinho mal chegava com os pés ao chão, e quase a chorar viro-me um dos meus grandes pedagogos, que é o Rui Ferreira, e digo “não me lembro de nada, não me lembro de nada, não quero ir!”, e o Rui só me disse “vai, não penses nisso, não questiones”, e a verdade é que fui, comecei a tocar e cheguei ao fim, foi impecável. É engraçado perceber os nossos limites e nervosismo da maneira como nos influenciam, e eu ainda hoje não gosto de tocar sozinho.

Esse nervosismo de entrar em palco e enfrentar uma plateia ainda continua hoje, ou foi passando com a experiência?

Não, de entrar em palco e enfrentar público não. Fico ansioso pela responsabilidade, tenho uma necessidade muito grande de tocar o melhor possível e de dar sempre o meu melhor, e por isso tento contornar o público e dar o melhor espetáculo possível, seja para 5 ou para 5000 pessoas, acho que o público merece. Claro que isso traz alguma ansiedade, mas é uma ansiedade boa. O tocar sozinho, por exemplo, é uma coisa que me incomoda, porque gosto de me sentir acompanhado. Lá está, eu toco em orquestras desde os 12 e em bandas desde os 13 anos, portanto gosto de partilhar a música com os meus colegas em palco e de fazer música em conjunto. Até hoje nunca tive o microfone principal à minha frente, fiz uma vez um espetáculo em que cantávamos duas pessoas mas não me senti muito confortável, mas tinha menos 7 anos do que agora, acho que são necessárias maturidades diferentes e a voz é uma coisa muito pessoal, e a minha voz, a mim, mostra-me as minhas fragilidades e inseguranças.

No teu caso, estes primeiros e importantes passos na música culminaram num invejável currículo, onde constam projectos de grande sucesso que certamente te deixam orgulhoso. Entre esses projectos, inclui-se o nome de uma das maiores bandas da história da música portuguesa: os Ornatos Violeta. Como começa essa aventura?

Bom, a aventura nos Ornatos começa com eles a verem um concerto meu com outra banda, mais ou menos. Eu  conheci o Manuel (Cruz )na escola preparatória por volta dos 11 anos, e depois por volta dos 15 começo a tocar com um grande amigo em comum, o Pedro Bombeiro, faço uma banda com ele, e na altura o Pedro fala ao Manuel Cruz “Tens de ver o gajo a tocar piano, o gajo toca p’ra caraças!”. E há uma altura em que os Ornatos (os outros 4) vão ver um  concerto nosso, isto logo ali no primeiro ano de Ornatos, e estiveram o tempo todo a rir-se. E eu percebo porquê…

Então porquê?

Epá, nós éramos muito bem comportadinhos. Éramos os Beach Boys, e eles eram os Rolling Stones, isto à devida proporção de gajos que não eram ninguém. Depois há uma altura em que o Manuel me diz para ir fazer uma audição para os Ornatos, e eu lá levei um teclado, e fiquei na banda.  Passado um mês demos o nosso primeiro concerto, sentimos logo os cinco que fazia sentido estarmos juntos, acima de tudo sentimos que queríamos trabalhar os cinco. Musicalmente as coisas resultaram muito bem.

Tanto resultaram que foram editados dois memoráveis álbuns: O "Cão" (1997) e "O Monstro Precisa de Amigos" (1999).

Mas há outras edições! As pessoas falam naturalmente nesses dois, mas há uma data de outros temas que pelo facto de terem sido gravados, e mesmo não terem sido editados , contribuíram muito para o crescimentos dos Ornatos. Ou seja, nós quando chegámos a 97 estávamos convictos que finalmente estávamos prontos para gravar um disco. Nós não gravámos antes porque sabíamos precisamente que não iria sair um bom disco, e não tínhamos um caminho bem definido. E mesmo em relação aos dois discos, os caminhos são muito diferentes entre eles.  Se para o “Cão”, os anos que o anteceram, de 93 a 96, e os estilos de abdicámos durante esse período culminam no disco, no caso do “Monstro Precisa de Amigos” é só 98 e 99. É essa a grande diferença. Foi um apurar de tudo o que queríamos fazer. Há aliás um tema determinante entre o disco de 97 e o de 99, o “Tempo de Nascer”, para a mudança de linha dos Ornatos, foi um descobrir de coisas importantíssimas. Eu acho que uma das coisas mais inteligentes que os Ornatos fizeram, foi recusar todos os convites que haviam para gravar até os cinco sentirmos que estávamos realmente prontos.

É engraçado saber isso, porque  ouvindo os álbuns, não é essa a sensação (em termos de maturação do trabalho) que fica. A sensação que me dá, pessoalmente, é que o “Cão” é algo muito mais impulsivo e com uma certa irreverência adolescente, sendo que “O Monstro Precisa de Amigos” é algo talvez mais pensado.

O “Cão” é muito pensado, mas é algo também muito afirmativo. É um disco de final de adolescência,  com um bocado daquelas coisas que queríamos ter pegado aos 18/19 anos, e ali então foi a cena para berrar. E depois de berrarmos, percebemos que tudo é questionável, e que não fazia sentido agora continuar a dizer “Quero mijar, quero mijar..”   porque a nossa vida entretanto muda. Muito acontece nesses dois anos, na estrada, em experiências e convivência com outros músicos e outras condições técnicas. Nesses dois anos, nós inclusive morámos os cinco juntos. Nós ensaiávamos juntos, íamos sair à noite juntos, e ainda vivemos juntos e tínhamos de lavar a loiça uns dos outros! E essa vivência, não sendo a vivência mais alegre do mundo, mete momentos fabulosos, momentos de galhofa e histórias incontáveis. Mas foi difícil, percebemos que essa cena de viver uma banda toda juntos é um mito, uma fantasia. Mas deu no “Monstro”, e lá na casa fez-se coisas importantes, partes importantes de músicas do “Monstro”.

Falando na construção de músicas para o “Monstro”, e na importância dessa vivência dos cinco na casa para o disco: Em termos da construção das canções, o quê que era mais pensado ? A parte instrumental, ou talvez mais as letras? Porque para mim as letras dos Ornatos Violetas, são das coisas mais notáveis da música nacional.

Para mim, o Manuel Cruz é o maior letrista da geração dele , e não falo só do Manuel nos Ornatos, falo dele também nos Foge Foge Bandido, nos Supernada, etc. Ele é um dos músicos mais criativos da geração dele. Na construção de músicas para os Ornatos não havia regras, acima de tudo cada um de nós sempre teve a noção do que que tinha de trabalhar para dar aos outros quatro. O Manuel trabalhava muito as letras, testava as letras, e por vezes questionávamo-nos. Mas se eu tivesse arranjos de teclado para fazer, fazia-os sozinho e chegava lá com o trabalho feito e eles viam. Individualmente estávamos sempre muito satisfeitos uns com os outros, porque toda a gente tinha a noção que tinha que trabalhar pr’a carago, cada um dos cinco tinha essa responsabilidade em si e de trabalhar para o mesmo. Sobre isso nunca foi preciso falar. A certa altura falou-se de formas de trabalho para se atingir melhores resultados e do que era preciso ensaiar mais, mas sempre tivemos a noção do que era preciso fazer, e isso é uma coisa que é rara. As cinco pessoas saberem o que têm que trabalhar, terem noção do seu valor, do que que há ainda que melhorar, etc. Portanto as canções podiam vir de um riff do Peixe ou de uma harmonia que eu tinha feito num loop com o Kinörm. A maioria vinha do Manuel, e depois cada um de nós pegava no trabalho uns dos outros e tentava adicionar coisas com qualidade e bonitas que fizessem sentido, sempre tudo muito filtrado pelos cinco.

E agora uma pergunta, que se prende com a curiosidade de saber algo mais sobre uma das minhas músicas preferida dos Ornatos Violeta: De que fala a "Capitão Romance"? É algo muito introspectivo não é?

O Manuel sempre questionou o ser, o estar, o porque das coisas e todas as letras dele são um bocado assim, a questionar o fim, questionar o início, por aí. Tenho alguma dificuldade em falar concretamente da "Capitão Romance", para isso seria melhor o Manuel, tenho medo estar a dizer uma coisa e ele não concordar. A "Capitão Romance" é o tema mais fora d' "O Monstro Precisa de Amigos", e acho um tema engraçado porque toda a construção do tema foi absolutamente o contrário, ou seja, aí não houve questionamento na sala de ensaios. Nos tentámos, tentámos, tentámos, mas não conseguíamos fazer um arranjo que satisfizesse os cinco. Então há um fim-de-semana que eu vou visitar os meus pais, e eles durante o fim-de-semana juntam-se, o Nuno faz a bateria, o Peixe leva o bandolim e fazem uma cena completamente nova. Eu chego na segunda de manhã, nenhum deles estava, eu oiço aquilo e faço os arranjos todos do teclado, gravo, mostro-lhes o tema como ficou e nada se alterou. Foi um tema que andamos meses à volta e em 3 dias tá feito. Depois veio só o Gordon Gano (vocalista dos Violent Femmes).

Porque surgiu esse convite ao Gordon Gano para participar no tema?

Violent Femmes era a grande banda de referência dos Ornatos, aliás, Ornatos soa muito a Violent Femmes mas em português. Então podermos gravar com o Gordon Gano, foi uma coisa inacreditável. Pega na tua maior influência, e imagina-a a fazer contigo uma cena tua e a darem-lhe os dois o nome! 

E o facto do Gordon cantar em português, foi algo sugerido pela banda ou foi iniciativa própria dele?

Nós nunca iríamos pedir para ele cantar em português, mas a partir do momento em que ele diz “Epá eu preferia cantar em português, há uns tempos cantei em grego com uma banda”, nós pedimos logo a um amigo nosso inglês para reescrever a letra num português  que não dificultasse a dicção, e foi impecável! Gravámos em duas horitas.

Já que estou numa de perguntar curiosidades sobre músicas e a história dos Ornatos em si, aqui vai outra: As personagens femininas nas músicas (a Marta, a Raquel, a Dama do Sinal, etc.) são inventadas, ou são uma espécie de musas da banda ?

São acima de tudo pessoas que têm a ver com a banda, as quais sabemos quem são e conhecemos, e que são importantíssimas para o Manuel , e depois para nos também claro. A Raquel era uma miúda por quem estive apaixonado na preparatória ,e ele (Manuel) no secundário. A Marta é a irmã do Manuel. A Dama do Sinal era sobre uma figura muito importante para o Manuel, aqueles amores que não tens nome para lhe dar, então chamas “a Dama do Sinal” enquanto não sabes o nome dela. Mas sim, todas as figuras são reais.

Um dos maiores legados que os Ornatos Violeta deixam na história da música portuguesa, é a enorme multidão de fãs absolutamente devotos! Qual é o segredo dos Ornatos para terem esta forte ligação com os fãs? Em termos das letras das canções, por exemplo, a identificação que cada um sente é enorme. E exemplo dessa enorme ligação com quem vos admira, é o facto de terem esgotado 7 Coliseus.

Há aqui várias questões sobre isso. Em relação às letras, o Manuel é um gajo que escreve dando espaço para que cada um interprete como quiser, porque não é algo taxativo, não é redutor. E as letras dele, dão espaço para que cada pessoa as sinta como suas. Toda a gente ama, toda a gente sofre, toda a gente morre, toda a gente nasce, toda a gente chora. E é disso que ele fala, do que todos nós somos. E o Manuel fala disso tudo não fechando as palavras no definitivo, no objetivo. Ele fala de sensações, e sobre as sensações nós podemos mudar as palavras mas as elas são parecidas. As coisas que eu sinto são parecidas com o que tu sentes: eu posso-lhe chamar  “tusa”, tu podes-lhe chamar “paixão” , mas as coisas são como são e ardem aqui dentro, ou incomodam, ou dão-nos prazer um bocadinho da mesma forma, e cada um  é que tem as suas palavras. Depois em relação a esgotar esses Coliseus todos, é sem duvida porque íamos acabar, não íamos dar mais concertos. Não há lirismos aqui. Se as pessoas soubessem que nos podiam ver uma vez por ano no Pavilhão Atlântico, as pessoas não iam encher 7 Coliseus, e não faz mal dizer isto.

Mas mesmo assim, e juntando ao facto de terem acabado em 2002 (um espaço de 10 anos até aos concertos nos Coliseus), as pessoas recordavam os Ornatos Violeta de uma forma muito intensa.

As pessoas foram sempre pedindo o regresso ao longo dos anos, havia petições na internet e as músicas foram crescendo. As canções são o mais importante de tudo, as canções dos Ornatos são intemporais, e as pessoas vão crescendo com as canções. Há pessoas que nos tinham visto ao vivo, que ouviram Ornatos durante a adolescência e cresceram connosco. Tive várias pessoas no Coliseu a dizer "comecei  a ouvir –vos aos 10 anos porque o meu pai mostrou, ou o irmão mostrou" e isso foi crescendo. E depois lá está, as letras são intemporais e tem espaço para crescer com as pessoas também. Sem dúvida que o que fez os concertos serem um sucesso foi o público. Nós trabalhámos, trabalhámos muito durante meses, mas é o publico que determina se um concerto é especial ou não, porque podemos fazer um trabalho do carago mas se não há chama, se não há ligação e se não há carinho entre o público e a banda não consegues fazer um grande concerto, não tens hipótese. Para nós, isto extrapolou, esta questão do carinho todo, montes de pessoas a chorar, toda a gente a cantar as letras. E depois não foi só no público, porque um dos elementos da banda no Coliseu de Lisboa chora porque não aguenta mais e no Porto chora também. Epá e aqui ninguém chora por encomenda, percebes? As coisas eram muito emotivas, se alguém dos Ornatos não chorou no palco, chorou lá atrás. Nós até fazíamos apostas a ver quem é que ia chorar nesse dia. Há com coisas que se passavam lá atrás, e que as pessoas não viram, que eram inacreditáveis: há abraços, lágrimas e beijinhos e o carago que não são narráveis de bonitos. Mas até mesmo na nossa equipa técnica, nunca mais me esqueço  que aqui no terceiro Coliseu de Lisboa, a certa altura estamos a tocar a ‘Como Afundar’, e eu olho para o lado e tenho um roadie todo tatuado, com quarenta e tal anos, cabelo comprido e de joelhos no chão, sem óculos, a chorar como se fosse uma miúda! E isso para mim é marcante. E acima de tudo, é a honestidade em palco, porque não havia ali nada ensaiado, nos podíamos ter feito 30 mil coisas no palco e não, não fizemos nada. O importante aqui são as canções, e as pessoas. Não vou estar com vaidosismos, mas eram importantes aqueles cinco ali. E nós esperamos que crescêssemos, que amadurecêssemos para conseguir aguentar a pressão e responsabilidade destes concertos. Todos nós tínhamos que crescer a muitos níveis, cada qual no seu, e encontrámo-nos depois de muita pressão e percebemos que os cinco iríamos conseguir aguentar. Aliás, estávamos aptos a ensaiar e a perceber que estávamos bem. E as decisões depois foram relativamente fáceis. Focámo-nos no que era importante, que era a musica e o prazer de estarmos juntos. E aquela cumplicidade, as lágrimas em palco e os sorrisos, as pessoas viam, há coisas que não consegues disfarçar. E neste concertos há para aí umas 100 coisas que me marcaram emocionalmente!

E a banda deu muito aos fãs, sentia-se uma enorme cumplicidade nos concertos entre vocês que estavam em palco e quem estava a assistir. Lembro-me até que no concerto a que fui, o primeiro no Coliseu em Lisboa, um rapaz subiu ao palco para tocar guitarra na “Deixa Morrer”!

Essa cena foi incrível! Quando o Manuel diz ‘Queres tocar?’’Anda!’ e quando o rapaz começa a tocar, eu tava naquela “Já nos lixaste a todos Manuel!”, mas não. O miúdo foi incrível, eu não era capaz de tocar a canção direitinha à guitarra! E depois tem uma cena com piada, eu em disco no solo de piano só faço 3 voltas no final mas decidimos fazer 4 ao vivo, e é engraçado quando entro na quarta, o rapaz da guitarra olha para mim e diz ‘Enganaste-te!’ e eu achei demais. Isto foi uma coisa impensada, como todas as coisas boas são. O que é planeado demais, é artificial. Nós nunca na vida pensamos deixar subir alguém ao palco. O Manuel no primeiro concerto arrisca, sem questionar. “Queres tocar ? A tua convicção diz-me que vais conseguir tocar. Sobe!” E é do carago! Toda a gente que subiu ao palco aguentou-se muito bem, eu não me aguentava tão bem, assim sem ser músico e com uma banda tão grande, a tocar guitarra e ainda por cima era ele que a aguentava toda, é preciso tomates. As pessoas nos concertos seguintes queriam todas, e o Manuel tem muita experiência como frontman, e em palco tem nas suas mãos o rumo do concerto. Ele parecia que tinha dedo para as pessoas, mesmo quem não cantasse muito bem, estava lá pelos motivos certos. E eu acho isso um bocado único, é preciso tomates e os tomates foi o Manuel que os teve, não fui eu. Aliás, todos os concertos foram únicos. Havia um bocado aquele receio da repetição, por serem concertos seguidos, mas nunca aconteceu.

Nesses épicos concertos de celebração, a banda relembrou o período em actividade entre 1991 e 2002. E durante esses 11 anos, muitas músicas foram feitas, e certamente grande parte delas te dizem muito. Se tivesses de escolher uma música para definir a essência dos Ornatos Violeta, qual seria?

Eu acho que não existe uma música para definir a essência dos Ornatos. A canção, para mim, mais importante dos Ornatos é a "Tempo de Nascer". Não sei se define a essência dos Ornatos, mas para mim, pessoalmente, é uma música que determina todo o meu futuro porque foi uma canção dolorosa de sair, foi pós-"Cão".  Tínhamos estado anos a trabalhar e a compôr, e de repente sentimos um vazio tremendo quando o "Cão" saí, e estivemos 3 meses até fazer a primeira música que foi o "Tempo de Nascer". Era uma coisa rara em nós, demorar tanto tempo a fazer canções ou a saírem. O "Tempo de Nascer" surge em Janeiro de 1998, é uma canção difícil, hiper intensa, dolorosa para mim, é um momento que estamos cansados e a nível pessoal eu sinto-a como o meu atingir da vida adulta. Uma música completamente diferente de tudo o que tinha feito antes, e se tiver que pegar num ponto de partida daquilo que me apetece fazer hoje em dia é o “Tempo de Nascer”. É uma afirmação, e acho que é das canções mais poderosas dos Ornatos.

Eu acho o “Tempo de Nascer” um verdadeiro hino, é de facto uma música com um poder incrível.

Eu acho, acho arrepiante. A mim, pessoalmente, é a canção mais importante dos Ornatos Violeta. Tem a ver com o meu ego, no “Cão” havia coisas que eu queria ter feito e não fiz porque não tinha ,secalhar, a maturidade e assertividade necessária.  E no “Tempo de Nascer” meto o pé na porta, “Isto agora não volta a fechar sem eu estar contente”. Sem dúvida que marca todo o trabalho para "O Monstro precisa de Amigos". Tem tudo a ver com a auto-confiança, e a forma como gravei o “Tempo de Nascer” e as dúvidas que já não tinha depois do “Cão”, para mim isso é importantíssimo.

No final destes 7 absolutamente inesquecíveis concertos de celebração, os Ornatos Violeta voltam a "cessar actividade", sendo que esta desta vez estava já prevista ser temporária..

Sabes, hoje em dia já não acho que os Ornatos tenham tido fim. Não tocam ao vivo, nem fazem música,  mas agora, nos Ornatos, o principal, é a entidade de amigos, antes de haver concertos dos Ornatos Violeta,  havia os “Ornatos”, o grupo de amigos que andavam na Soares Reis e iam para a Ribeira. E isso ficou, ou seja, o mais importante ficou. Prefiro tê-los como 4 dos meus melhores amigos, do que andarmos a fazer música e não queremos estar juntos fora dali. Portanto, os Ornatos hoje em dia existem, não penso nos Ornatos como no passado. E estou com eles, e temos uma relação muito peculiar em que vamos a concertos juntos, e jogamos matrecos para celebrar o aniversário dos concertos nos Coliseus…

…e secalhar daqui a uns anos voltam outra vez..

Nós combinámos aos 60 anos do Kinörm, portanto já só faltam 20! Mas é como te digo, continua a haver muita troca de experiências, perguntamos como é que estão a correr os nossos projectos, esse tipo de coisas.

Pegando na "deixa" dos projectos individuais: a que projectos te dedicaste pós-Ornatos, e até mesmo durante aquele hiato de 2002 a 2012?

Entrei em muitos projetos sempre, felizmente. Falando mais agora, este ano estive com o Jimmy P a tocar, entretanto saí para me dedicar aos meus projetos e para me dedicar uma bocado mais como freelancer a outros. Tenho dois projetos, um deles já arrancado já com banda, que é a  ‘A Mão que Morde’, em que convidei o Ruca Lacerda, o Pony Machado e o Dj Disca-Riscos. Pessoal com quem toquei no projecto do Jimmy P, e com os quais tinha saudades de tocar. Entretanto, acho vou gravar uns teclados com o Diogo Piçarra para o disco dele, o rapaz que ganhou o Ídolos. Depois, toco de vez em quando com os Denário, uma banda de amigos meus do Porto. Tenho também o “Gato Morto”, que é um projecto meu de canções, com o qual tenho tido muita calma, sem pressões de nada. Vou agora gravar para a semana  os arranjos de teclado para um disco de uma banda do Porto que são os Abominável. E pronto, dou também aulas no meu estúdio e no Instuto Orff, ao qual regressei. Muita coisa, felizmente muita coisa.

Depois de tantos projectos e de tantas colaborações, existem ainda algum músico ou alguma banda com quem gostarias de trabalhar?

Eu gosto de tocar com boas pessoas. Acima de tudo, hoje em dia só me apetece trabalhar com gente que eu goste. Sendo assim, há montes de gente do meu passado com quem eu gostaria imenso de voltar a tocar, e já lhes disse. Voltava já a tocar com os GnR, voltava já a tocar com o Sérgio Godinho,  adorava tocar com o Jorge Palma, adorava tocar com o Rui Veloso. Há muita gente, muita gente. Tive muita sorte com as pessoas com quem me cruzei e trabalhei, e acho isso do caraças. Dizia o ano passado, e continuo a dizer: se eu deixasse de trabalhar agora, acabava completamente realizado.

Como tipo da música, para além de trabalhar em compôr muita música, deves também consumir bastante música. Há alguma banda que tenhas ouvido mais recentemente que te tenha deixado surpreendido?

Olha, banda portuguesa que ouvi imenso o ano passado foram os Ludo. Devorei completamente o disco deles, o “Almirante”.  Oiço também os Prana, a Márcia, Virgem Suta, Anaquim. Farto-me de ouvir Nuno Prata, adoro o Nuno e as canções dele. Banda estrangeiras, as que talvez mais devorei no último ano foram Eels e Nine Inch Nails, provavelmente. Eu chego a casa para descansar do trabalho, posso ter estado em estúdio o dia inteiro, e meto música para relaxar. Portanto sou um bocado obsessivo-compulsivo, mas esta é uma obessão que não é assim tão má.

Para terminar esta agradável conversa, tenho uma questão curiosa para te colocar. Nós já falámos sobre o teu regresso ao Instituto Orff do Porto, para dar aulas de música. Usando esse teu instinto de professor, existe alguém a quem aches que fazia bem uma aula de boa música?

Eu não gosto muito de criticar ninguém, acho que as pessoas devem perceber por elas quando estão erradas. Acho que todo o trabalho é válido, mas nenhuma arrogância é válida. É tão simples quanto isto. Quando vejo um gajo arrogante sem razão, que por acaso vendeu muitos discos, eu lembro-me do Zé Cabra, ele também vendeu muitos discos. Muita música brejeira já vendeu muitos discos, por isso vender músicas por si só não é sinónimo de nada. Mas agora, há também muitos bons discos que de facto venderam muito. Um dos discos mais vendidos em Portugal ou é do Rui Veloso ou do Abrunhosa, e quando eu vejo isso fico um bocadinho mais descansado porque são dois discos do carago. Perfeitamente atacáveis mas não por alguém com bom senso, parece-me. 

Elísio, muito obrigado por esta conversa, que espero que tenha sido tão interessante para ti como foi para mim. Foi uma honra enorme ter-te como primeiro convidado deste meu espaço. Boa sorte para todos esses futuros projectos!

Foi um conversa porreira, falámos de 30 mil coisas! Obrigado, até à próxima. 

Para ti que nos estiveste aqui a fazer companhia, deixo-te "Tempo de Nascer", a música que tal como o próprio Elísio Donas nos confidenciou foi fulcral para o crescimento dos Ornatos Violeta. E que música!


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